Campo Grande (MS), Domingo, 24 de Agosto de 2025

Artigo

Jornalismo, do chumbo ao digital

24/08/2025

07:15

WILSON AQUINO

WILSON AQUINO*

Assim como acontece na vida, em que olhar para trás nos ajuda a valorizar o que somos e o que temos hoje, o jornalismo também se enriquece quando resgata sua própria história. Quem vê um repórter nos dias atuais cobrindo fatos em tempo real com um iPhone ou smartphone — fotografando, filmando, gravando entrevistas, editando o material ali mesmo e postando em sites de notícias, redes sociais ou enviando tudo por WhatsApp, e-mail ou plataformas como WeTransfer para as redações — dificilmente imagina como era a prática jornalística há meio século e muito menos todo o caminho percorrido até chegarmos aqui.

Eu, que atuo como jornalista há 47 anos, tenho plena consciência do privilégio de ser testemunha viva e praticante de toda essa transformação.

No início da década de 1970, quando comecei minha trajetória, primeiro como office boy, no jornal Correio Braziliense Diário da Serra, em Campo Grande, as matérias eram escritas em máquinas de escrever manuais. Depois de revisadas por um copy desk — normalmente professores de Língua Portuguesa especializados em linguagem jornalística, como era nosso querido professor Dalton Santiago — eram encaminhadas ao Departamento de Polícia Federal, responsável pela censura imposta pelo regime militar, para aprovação. Só então seguiam para a oficina do jornal, onde os textos eram reproduzidos no sistema de linotipia, em que cada palavra era montada letra por letra, de trás para frente, para formar os “clichês” usados na impressão.

A oficina do jornal era um espetáculo à parte. O cheiro forte da tinta misturado ao calor do chumbo derretido impregnava o ar, enquanto o barulho compassado das linotipos criava uma sinfonia metálica que ecoava noite adentro. Cada profissional tinha sua função precisa, como em uma grande orquestra, e qualquer erro podia comprometer a página inteira. Para um jovem aprendiz como eu, era fascinante ver como, de textos datilografados, surgia aos poucos a forma física de um jornal, com colunas, títulos e imagens se transformando em notícia impressa em preto e branco.

A diagramação exigia precisão e talento. Profissionais como Suely Higa, irmã do fotógrafo Roberto Higa, e João Bispo do Nascimento — que descobriu sua vocação para o jornalismo após virar notícia, sobrevivendo a um acidente com um fio de alta tensão de um poste que caiu, transformando-se em um dos melhores profissionais da área — faziam cálculos minuciosos de espaço para textos, títulos e imagens. E não bastava apenas encaixar as peças. Era preciso estética e arte para valorizar a matéria, a página, o jornal. As fotografias, por sua vez, eram transformadas em clichês de metal, arquivados em prateleiras que chegavam ao teto. Havia até um arquivista responsável por localizar rapidamente imagens de autoridades, políticas, obras, esportes e demais editorias.

Naqueles tempos, a censura não era apenas uma palavra, mas uma presença constante nas redações. Lembro-me da aflição de colegas aguardando a liberação de matérias sensíveis, muitas vezes já diagramadas e prontas para impressão. Bastava um carimbo de “vetado” para todo o trabalho ser desfeito em minutos. Alguns repórteres buscavam formas criativas de driblar os censores, trocando palavras, suavizando expressões ou deslocando a crítica para entrelinhas que só o leitor mais atento percebia. Viver sob esse clima de vigilância era um desafio, mas também forjou gerações de jornalistas determinados a não abrir mão da verdade.

Recordo-me da tensão de colegas como Valdir Cardoso (mais tarde vereador), Francisco Lagos, Sílvio Martins, Waldemar Hozano e Guilherme Filho, entre tantos outros, quando aguardavam a aprovação de matérias políticas mais sensíveis. O jornalismo vivia sob vigilância, mas não perdia sua garra.

Do ponto de vista tecnológico, além das entrevistas presenciais ou por telefone, as redações contavam com o telex, que cuspia em longas tiras de papel as notícias nacionais e internacionais. Para as fotografias externas, inicialmente dependíamos de ônibus intermunicipais ou interestaduais para transportar filmes. Alguém do jornal tinha que ir à Estação Rodoviária para esperar a chegada de ônibus para pegar o material com o motorista para então voltar à redação e revelar.

Foi com a mesma surpresa de quem assiste a um milagre que vimos pela primeira vez uma fotografia chegar pela linha telefônica. Demorava longos minutos para que a imagem se revelasse, linha por linha, no papel especial, mas era emocionante presenciar a tecnologia encurtando distâncias. O telex, por sua vez, trazia notícias do mundo em tiras intermináveis de papel perfurado. De repente, uma redação em Campo Grande podia ter acesso quase simultâneo a fatos ocorridos em Brasília, Nova Iorque ou Paris.

Aquilo ampliava horizontes e dava a sensação de que o jornalismo local estava conectado ao planeta inteiro.

Pouco depois surgiu o fax, ou “fax símile”, que permitia enviar textos, documentos e imagens em poucos minutos. “Vou te mandar um fax” era, na época, símbolo de modernidade e sofisticação. Assim, passo a passo, o jornalismo foi deixando o chumbo e o clichê metálico para abraçar a informática, os computadores, a diagramação eletrônica, as redações informatizadas e, por fim, o universo digital, que ainda hoje continua em plena transformação.

Comparar aquele tempo com o presente é inevitável. Antes, uma notícia podia levar dias para chegar ao leitor, seja por ônibus, avião ou correio; hoje, ela surge na palma da mão em segundos. O jornalista que antes dependia de linotipos, clichês de chumbo e longos processos de aprovação, agora tem a tecnologia como aliada imediata. Mas é justamente nesse contraste que está a grande lição: embora os instrumentos mudem, a essência permanece. A velocidade não pode se sobrepor à responsabilidade, nem a facilidade substituir a investigação. A missão maior continua a mesma: servir à sociedade com informação de qualidade e, sobretudo, verdadeira. Olhar para esse passado não é um exercício de nostalgia, mas de valorização. É lembrar que se, por um lado, a tecnologia trouxe velocidade e recursos inimagináveis, por outro, não pode substituir a essência da profissão. Cabe ao jornalista manter o compromisso de investigar, apurar e analisar com rigor, ética e responsabilidade, garantindo que a sociedade receba informação de qualidade e, acima de tudo, verdadeira. Porque, acima de qualquer inovação, o coração do jornalismo continua sendo a verdade dos fatos.

*Jornalista e professor.


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